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Futuro da Europa, da Rússia e da ONU depois da guerra na Ucrânia marca debate no LeV

16 Maio 2022
Futuro da Europa, da Rússia e da ONU depois da guerra na Ucrânia marca debate no LeV
Cultura
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A incerteza quanto ao futuro depois da guerra na Ucrânia marcou um dos debates deste sábado do Literatura em Viagem (LeV), em Matosinhos, que apontou também as culpas da Europa e antecipou o fim da ONU e a desintegração da Rússia.
Numa mesa de debate dedicada ao tema “A geografia do medo”, que encheu a sala da Biblioteca Municipal Florbela Espanca muito além da sua capacidade, o jornalista José Milhazes, que foi correspondente em Moscovo durante 16 anos, afirmou-se “pessimista” com o progredir da guerra na Ucrânia e da invasão pelas tropas russas.
“Deixamos uma herança asquerosa aos nossos filhos, um mundo instável. O mundo que recebemos acabou a 24 de fevereiro. Hoje vivemos num mundo de incertezas. Temos que nos preparar para isso, todos, recordar os bons momentos do mundo que vivemos no passado, porque o que se aproxima é extremamente perigoso. Não estou a falar que haja guerra nuclear, não quero acreditar, embora já nada me estranhe”, afirmou.
Segundo o jornalista, a situação que atualmente se vive “era previsível” e “tudo se resume a dinheiro”, quando o ocidente “vai tolerando coisas que não deve tolerar”, com uma política dupla em que uns podem e outros não.
“O facto de estarmos nesta situação é culpa do Putin”, mas a Europa e os dirigentes escolhidos também a têm, afirmou, lembrando que a Rússia bombardeou a Tchetchénia e a “Europa fez de conta que não viu nada”; “em 2008 invadiu a Geórgia e, após um acordo intermediado pelo presidente da Comissão Europeia Durão Barroso e o Presidente francês Nicolas Sarkozy, a Europa esqueceu”; “depois veio a Crimeia, fez-se barulho e novamente esqueceram. Agora finalmente acordaram, mas viu-se que não tinha sido feito grande parte do trabalho que devia ter sido feito, nomeadamente na parte dos combustíveis. Isto era previsível e muito por culpa nossa, habituamo-nos à boa vida e não pensamos”.
Sobre o efeito transformador que a guerra terá, José Milhazes considerou que “vai transformar tudo”, embora persista a dúvida sobre o que vai acontecer, nomeadamente à Organização das Nações Unidas (ONU), que, acredita, não irá resistir.
“O que vai ser feito da ONU? Provou-se que não serve para nada, teve um papel importante depois da Segunda Guerra Mundial, funciona do ponto de vista humanitário, mas não de solução desses problemas”, afirmou, acrescentando que “o direito a veto matou a ONU”, resta saber “o que vai aparecer” no seu lugar.
Outra preocupação apontada é o futuro da própria Rússia, que “está a mostrar que, em termos militares, é um ‘bluff’ – as bombas nucleares já é outra coisa -, que as suas Forças Armadas estão aquém do que muitos imaginaram, até mesmo o próprio Putin”.
“Não sei se a Ucrânia vai ganhar esta guerra. A Rússia não vai ganhar esta guerra. O que acontecerá depois? E se a Rússia se desintegra? A confusão pode-se instalar dentro daquele ‘continente’. Este cenário pode ser mais perigoso do que estamos a viver hoje. O que vai acontecer? A Rússia vai ser cercada e isolada pelo mundo? Que Ucrânia vamos ter no fim?”, questionou.
O debate, que contou também com a participação da enfermeira de Carmen Garcia e do médico Gustavo Carona, intensivista com trabalho humanitário, designadamente em representação dos médicos sem fronteiras e médicos do mundo, centrou-se também na diferença de tratamento da Europa aos refugiados ucranianos, em comparação com refugiados oriundos de África ou do Médio Oriente, por exemplo, enquanto reflexo, ou não, de uma postura racista.
O médico recordou que a “Ucrânia não está sequer no ‘top 30’ dos dramas do mundo, está em termos geopolíticos, não em termos de sofrimento, de problemas humanos” e considerou tratar-se de uma questão de racismo.
Carmen Gacia considerou não ser “justo passar a borracha do racismo” sobre este assunto, argumentando que a psicologia explica a “empatia por quem nos está mais próximo” e que há uma “agenda mediática” que mostra o terror que se vive na Ucrânia, tornando mais real, e portanto mais fácil de gerar empatia, aquele sofrimento, do que o da Síria ou do Iémen, de que se tem conhecimento, mas do qual se tem apenas uma representação.
José Milhazes alertou, por sua vez, que “a procissão ainda vai no adro” e afirmou recear o que vai acontecer quando as pessoas “começarem a ficar cansadas da solidariedade e recomeçarem com conversa do costume sobre os que vêm para aqui roubar o trabalho”.
No entanto, alertou que a empatia da Europa em relação à Ucrânia não é apenas “porque estão ao pé de nós, mas porque neste momento são a nossa trincheira”.
A 16.ª edição do festival LeV – Literatura em Viagem arrancou no dia 9 de maio e decorreu até domingo.