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2017 – Ano do Auto da Barca do Inferno

13 Janeiro 2017
2017 – Ano do Auto da Barca do Inferno
Opinião
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À meia noite cumpriu-se o ritual. Girândolas de foguetes ao redor de todo o lado, champanhe, abraços e augúrios de muitas felicidades. As Câmaras Municipais vão tomando a iniciativa desta mundanidade e, assim, oferecem ao povo contribuinte uma passagem de ano “a bom marché”. É correcto. Sai-se da família para a festança colectiva que poucos tostões custam ao erário público. Todos desejamos que 2017 seja um ano próspero e tranquilo.
O acontecimento cultural marcante em 2017 são os 500 anos do Auto da Barca do Inferno que Mestre Gil Vicente escreveu. Vale a pena recorrer ao pai do teatro nacional e revisitar a intimidade satírica dos seus autos, admiráveis como observatório do pensamento do século XVI. O teatro vicentino agarra os vícios e desmandos dum tempo tipificado no religioso e no mitológico. Hoje, assim é também. Será 2017 um ano de tragédia? A linguagem da tragédia é o conflito entre o divino que representa tudo o que é essencial, definitivo, eterno e o humano que responde pela contingência do sentimento, do erro, da ignorância. Os homens não se entendem com os deuses. É uma tragédia. Será o drama, o protagonista de 2017? Na literatura grega, o drama é de pura responsabilidade humana. O homem, livre, faz e decide sem a anuência da divindade. No drama, o conflito disputa-se entre as pessoas que se degladiam, tentando uma vencer a outra, sempre com desfecho violento ou sangrento, irónico ou tranquilo. Os homens atropelam-se mutuamente. Será 2017 de comédia ou farsa? A comédia faz rir porque os seus personagens, eles mesmos, se riem e, na onda desse riso, arrastam os espectadores. A farsa confunde o ridículo ao pretender fazer-nos rir. Sobretudo, ri de si mesmo. Da herança greco-latina ficou o aviso: “ridio te, ridio tibi”. Rir-me de ti ou rir-me para ti.
O auto da Barca do Inferno faz 500 anos. Uma mensagem actual para o ano de 2017. Gil Vicente, na trilogia dos Autos – o do Inferno em 1517, os do Purgatório e da Alma em 1518 – leva-nos ao destino merecido. A barca do Inferno vai sempre cheia, enquanto as outras, semi vazias. Há muita gente perdida no rumo duma humanidade sem destino.

Pe. Bártolo Pereira