Última hora

Novos templos para novos tempos

27 Julho 2016
Novos templos para novos tempos
Opinião
0

É tão certo como o calor de Verão: com o estio, o país recebe inúmeros festivais de música. Entre nomes consagrados mundialmente e outros emergentes, do som mainstream ao mais alternativo, desde o rock mais pesado à electrónica mais dançável, todo o espectro musical marca presença em Portugal, assim sintonizando o nosso país com uma Europa onde tais eventos há muito eram prática comum.
Mas, este ano, associado à passagem de certas bandas, surgiu uma outra visão sobre o panorama sonoro contemporâneo: a espiritual. Quem anda minimamente atento ao fenómeno musical, sabe que algumas canções têm um cariz religioso, não necessariamente procedente desta ou daquela religião, mas com o autor a aproveitar o sentido das letras para abordar questões metafísicas como o nosso lugar perante o Universo, perante a Vida, perante Deus, perante a nossa própria consciência existencial. Parece um cenário impossível, quando se acusa a música pop/rock de ser “superficial”, exceptuando casos precisos em que é utilizada como arma denunciadora ou, como cá ficou conhecida, “de intervenção”. O tiro de partida foi dado pelo Pe. Tolentino de Mendonça, em “A teologia segundo Bruce Springsteen”, seguido, semanas depois, dum brilhante texto de Henrique Raposo, “Aleluia! Ou o rock enquanto fé”.
A visão destes dois colunistas está impregnada de cristianismo. Citam, naturalmente, os americanos Springsteen e Johnny Cash, mas também o australiano Nick Cave, os irlandeses católicos U2 e os canadianos Arcade Fire e até o judeu Leonard Cohen. Tudo proveniente do universo anglo-saxónico, onde a leitura dos textos sagrados é uma prática habitual desde tenra idade. Não admira, portanto, que estes songwriters, ou escritores de canções, vertam para as suas composições muito do ensinamento religioso que lhes foi ministrado. Mas não o transcrevem, antes mostram o quanto o assimilaram. A religião serviu-lhes para crescerem, para construírem a sua mundividência, para expiar as suas angústias existenciais.
Canções dos U2 como “One”, onde se proclama a igualdade e a fraternidade entre todos os seres humanos ou “Where the Streets Have no Name”, onde se brinda à liberdade do homem para desbravar “mares nunca dantes navegados”, só são compreensíveis à luz da nossa mundividência judaico-cristã. Quando Tim Booth, dos James, lamenta que “já não sinto o meu Deus a olhar por mim” não está a renegar nada, antes a dizer que, tal como Nick Cave em “Into my arms”, também não acredita num Deus interventor, mas antes num companheiro, num amigo, de Alguém que ali está, não para se substituir à nossa vontade ou para nos comandar, mas para nos ajudar nas escolhas. E quando Booth convida “os tristes, os loucos, os ridículos a sentarem-se” junto dele, está a invocar esse texto formatador da nossa civilização ocidental que dá pelo nome de “Sermão da Montanha” tal como Johnny Cash, que tanto cantava para os milionários em Las Vegas como para os criminosos na prisão de Folsom. O Bem e o Mal lutam e convivem sempre, tal como o caminho entre a terra e o céu tem dois sentidos, ambos de dar e receber, como aquela escada que Jacó viu, onde anjos subiam e desciam, e que foi sublimada pelos Led Zeppelin na imortal “Stairway to Heaven”.
Enfim, os exemplos são inúmeros e comprovam, claramente, que ao contrário do que se pensa, a espiritualidade está presente em muita da música que se ouve nos dias de hoje. Há muito menos gente com paciência para ir à Igreja ou ao templo, mas isso não quer dizer que não tenha vida espiritual. A fonte é que passou a ser outra. Em vez de graníticas catedrais, de tectos altos, para que o crente se sentisse minúsculo perante a grandeza da divindade, hoje parece que se “reza” em espaços abertos, cultivando-se a proximidade com o céu e a harmonia com o Todo, permitindo um diálogo directo, sem “intermediários”, entre Deus que, lá “de cima”, com o seu olho da Providência, observa e escuta aqueles que o saúdam e celebram.

Pedro Brás Marques