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Sozinho em casa…

1 Dezembro 2016
Sozinho em casa…
Opinião
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Um sonho é interrompido subitamente pelo irritante toque de telemóvel, marcado com a hora de todos os dias. Jorge está habituado a que esta faca aguçada lhe entre pelo sono e lhe interrompa de forma violenta um sonho belo, mas sobretudo o belo descanso. Como sempre num impulso salta da cama e não adia nem se tortura mais com a dúvida de se levantar da cama. De imediato é empurrado para a casa de banho, onde lhe espera uma torneira de chuveiro, que logo abre para que a água tenha tempo de se aquecer até ele entrar. De seguida quase como um robot dirige-se à sanita e alivia o corpo, mas também o espírito, já que é o momento escolhido para se situar no tempo e rever a sua agenda. Não lhe vem nada de especial à sua cabeça e por isso não perde muito tempo com a reflexão. Enquanto a água corre e enche a casa de banho de vapor, Jorge olha para o espelho e despe-se… Gosta de se olhar todos os dias ao espelho e de ir acompanhando as marcas do tempo no seu corpo, ou então o esforço que faz para que o tempo não o marque. Jorge gosta de gostar de si, faz vários desportos e frequenta um ginásio alguns dias por semana. Aprendeu a ver o seu corpo depilado, sem banhas de gordura e sem o deixar ficar mal, quer nos seus fatos slim, quer no momento em que retira a roupa e se obriga a seduzir. Todos os dias seduz a sua imagem no espelho e só entra no chuveiro depois de saber que continua bem. Aproxima o rosto do espelho para conferir as poucas rugas que já tem, constata que a barba está a crescer e avalia se lá terá de pegar na lâmina e aparar. Tolhido pela preguiça decide que hoje não faz a barba, até porque lhe dá um certo ar de bandido e as mulheres gostam. Confiante entra nessa cascata de água bem quente que lhe lava alma e o revitaliza para o dia que aí vem. Volta a pensar na sua agenda mas sem chegar a grandes conclusões. Também não interessa porque, primeiro tem de acordar, entrar e estar pronto para enfrentar o mundo, seja qual for o desafio que aí vem. Jorge gosta de pensar que cada dia é um desafio novo e está habituado a ganhá-los. Depois do banho com aquele gel que lhe ofereceram juntamente com o seu perfume preferido e de usar o champô especial contra queda de cabelo, que o ameaça desde os seus 20 anos… E isso foi há 20 anos… Jorge sai do chuveiro com o seu ar confiante de quem parece estar a ser filmado, agarra numa toalha fofa de cor preta a contrastar com o mármore branco Estremoz com uns ligeiros raios cinza. Seca-se energicamente e coloca a toalha à cinta. Dirige-se novamente ao espelho e confere-se, desta vez encontra uma ruga nova na expressão do sorriso que faz ao espelho, porque acha que é bem mais bonito quando se ri. De imediato pega nos seus cremes de rosto e corpo e aplica a loção que o salvará do tempo que teimosamente passa. E fica suspenso neste tempo que o deixa novamente novo, hidratado como um bebé e com um perfume que lhe sai do corpo juntamente com o calor do banho quente. Passa uma escova nos cabelos, ainda os tem muitos apesar da testa que já pronuncia um desfecho que quer negar. Descobre mais uns cabelos brancos, o que o deixa bem mais esperançoso quanto ao charme que (dizem) vem substituir a beleza, embora ele saiba que esse momento ainda está longe. Pronto, está pronto para enfrentar o mundo, empurra a porta de correr e dirige-se para o compartimento seguinte, como se de uma novo quadro de um jogo de consola se tratasse. Quarto de vestir. Abre todas as portas dos armários e admira o seu mundo de sonho com um grande espelho ao fundo e o cheiro do seu perfume preferido. Está dividido racionalmente por camisas, calças, malhas e roupa interior. Tem uma secção especial só para a roupa de desporto. Os fatos medicamente arrumados por estações, por ocasiões e por cores. Antes de chegar ao calçado passa por um smoking que lhe refresca a memória como mentol e o faz viajar de rompante para uns 15 anos antes, o seu casamento. De repente um filme a alta velocidade atravessa a sua cabeça, passando apressadamente pelo dia do primeiro beijo com a sua mulher Sofia, pelo jantar naquele restaurante italiano onde a pediu em casamento, a lua de mel, em Varadero e Hanava Velha e o daikiri no Floridita… A memória salta para o dia em que num hospital entra no bloco para assistir ao nascimento da Clarinha, mas aquela reunião com um cliente especial atrasou-o e ela já estava no colo de uma enfermeira. Lembra-se de a não ver suja de sangue mas sim imaculada, com uma roupa cor de rosa e um ar cândido. Na verdade até agradece ter sido assim…
Jorge é casado e depois dessa conclusão repentina, rompe pela casa à procura da mulher e filha para lhe dar o bom dia. O apartamento é grande. apesar de serem apenas 3 pessoas. e, enquanto o percorre, Jorge lembra que o pensou grande porque sonha com uma família grande. Há um silêncio sepulcral naqueles espaços e por fim dirige-se para a cozinha onde espera encontrar as gargalhadas de Clarinha, misturadas com o sorriso e o beijo de bom dia de Sofia. Só o som do mar invade aquela cozinha, gastaram imenso dinheiro para viver em frente ao mar e a cozinha era o palco preferido da vida dos três. Desde o tempo em que tinham de fazer autênticas peças de teatro para que a Clarinha comesse a primeira sopa.
Jorge senta-se naquele banco alto em costuma tomar o pequeno almoço apressado, há um misto de vazio e de mundo novo naquela solidão da casa. Está sozinho em casa! Pega no telemóvel para ligar a Sofia e saber o que se passa, mas por momentos tem dúvidas se o quer fazer ou se o quer saber…
Continua…

João Amorim Costa