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Escritores de canções

18 Novembro 2016
Escritores de canções
Opinião
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Para além duma super-lua, este final de ano proporcionou um fantástico alinhamento de estrelas, mas da música contemporânea: Bob Dylan ganhou o Nobel da Literatura, Bruce Springsteen lançou a sua autobiografia e Leonard Cohen, mesmo antes da despedida final, ofereceu-nos o seu último disco. Dentro do seu estilo, cada um deles é um extraordinário escritor de canções. Há quem lhes chame “cantautores”, o que é uma imbecilidade, ou quem se agarre ao anglicismo original, “songwriter”. Prefiro a tradução, literal, que me parece mais adequada: escritores de canções. Porque é isso que eles são, músicos que escrevem canções.
Cohen é o poeta do Amor. Do Amor como como união plena, do Amor por Deus, do Amor pelo próximo, do Amor por uma mulher. Tantos poetas, tantos criadores, tantos cantores sublimaram o estado de graça que é estar apaixonado mas poucos tiveram a sensibilidade de o caracterizar como o fez Cohen. Foi ele que nos ensinou o sabor do Amor: “a chá e laranjas que vêm da China”; foi ele que nos fez ver como é que o Amor se vestia: com uma “gabardina azul”; foi ainda ele que nos informou sobre a espessura exacta do Amor: “mil beijos de profundidade”; e foi ele que nos disse em que é que o Amor nos transformava: “como um pássaro num fio”. Foi ele que nos pediu para com ele “dançarmos até ao fim do Amor”… E assim fizemos.
Já Bruce Springsteen mexe-se noutras águas. O “Boss” não compõe hinos à glória da América ou ao seu mítico American Dream. Faz o oposto – ele conta e canta as histórias daqueles a quem a vida não sorriu, os trabalhadores explorados, os soldados esquecidos, as famílias angustiadas, a América que está longe dos brilhos de Hollywood e da vertigem dos arranha-céus de Manhattan, gente com uma vida complicada, a precisar de sentido, marcada pela tragédia e amaldiçoada por uma desencorajante perda de esperança. «Há uma canção de Springsteen para cada momento da vida», alguém um dia disse e é bem verdade. Para mim, “Springsteen é a banda sonora do filme da minha vida”, como escrevi num livro que o seu grupo português de fãs concebeu aquando duma sua visita a Portugal.
Já Bob Dylan é duma dimensão diferente. Também escreve sobre o Amor e sobre a América. Mas fá-lo com o desprendimento de quem sabe que é um escolhido. Despreza prémios e comendas, como demonstrou ao não estar presente para receber o Nobel da Literatura, como já o tinha feito quando venceu um Óscar pela música “Things have changed”. Não quer saber se gostam ou não do que ele faz. Ele escreve e publica mas é-lhe indiferente o sucesso, porque o fascínio está na arte da criação. “Escrever é o que eu sei fazer”. Christopher Ricks, professor catedrático de Literatura Inglesa nas Universidades de Cambridge e Boston, considera-o “o maior utilizador vivo da língua inglesa”. Mas Dylan não se serve só magistralmente das palavras. Há narrativas duma surpreendente criatividade, há sentidos que nos perturbam, há intervenção política, há análise social e, claro, há muita poesia: “eu sou poeta e sei-o”, disse um dia o mais recente laureado com o Nobel.
Três extraordinários criadores que se movimentam numa área criativa difícil de catalogar, nascida do casamento entre a música a e a palavra. São distintos no que os perturba, mas com um ponto em comum: escrevem e cantam sobre a condição humana – um tema universal , cuja brilhante leitura pessoal os torna imortais.

Pedro Brás Marques