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Crónica de sonho de um sonhador crónico

12 Fevereiro 2016
Crónica de sonho de um sonhador crónico
Opinião
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O que é que estimularia a economia, enriqueceria o Estado e colocaria o dinheiro e a propriedade privada no seu devido lugar, deixando a posição de Deus moderno e fonte de alienação individual e colectiva? O que é que agradaria a neoliberais radicais, social-democratas, socialistas, marxistas e até a frades franciscanos e monges budistas? O que é que mudaria o paradigma da nossa sociedade capitalista e transformaria a cobiça em respeito, a ganância em filantropia, o rico em herói colectivo, o desaparecimento de pobres e tornaria a meritocracia prática corrente? O que elevaria a justiça, o empenho, o respeito pela vida, o trabalho por convicção e acabaria com o desemprego? O que tornaria uma sociedade despojada de açambarcamento e colecionismo material. A minha amiga ensinou-me quando me sugeriu: “e se acabássemos com as heranças? “
Se acabássemos com as heranças? Mas ela está maluca?
Não. Nunca em tempo de vida avistara tamanha desconstrução do paradigma actual de forma tão simples e inequivocamente eficaz e justa. Na falta de património para deixar aos filhos, apenas nos restaria o investimento na sua formação e enriquecimento geográfico e cultural. Na impossibilidade de possuir riqueza no pós-vida, para que serviria a conta desmesuradamente choruda? Não estimularia o investimento na ciência, na arte, cultura, desporto ou outra tara qualquer que alimente a felicidade ou a consciência da pessoa em questão?
A extinção dos advogados que tratam das sucessões é por si só razão quase suficiente para me entusiasmar com a ideia. As partilhas de bens herdados são, a maioria das vezes, a forma que os falecidos encontraram para nos lembrarem a falta que nos fazem e o quão estúpidos somos.
Quem não herda créditos também não herdará débitos, o que colocaria os bancos no seu devido cantinho. O estado era ciclicamente dono de tudo o que nos garantiria tudo o que é essencial. Os impostos passariam a desnecessários. Acabariam. Que maravilha. A corrupção gananciosa perderia adeptos. Viver ganharia vida. Faz sentido. Acumular passaria a ser absurdo. Viver passaria a ser prioridade. Depois há os valores afetivos. A casa dos avós. O Lótus do tio solteiro. Qualquer lei que salvaguardasse a aquisição prioritária por parte dos descendentes resolveria isto. À semelhança da que protege os vizinhos de um terreno.
Ultrapassando a componente material da coisa, julgo que perceberíamos melhor o sentido da vida. Só em pensar que nasceríamos todos na casa partida fico excitado. Imaginemos que a vida era exactamente aquilo que fomos capazes de construir e não aquilo que nos construíram. É como se nascêssemos sem pecado original. Cada um cada qual. Cada vida seu destino. Que maravilha.
É, no entanto, fácil de perceber que poucas pernas há para vingar. A nossa organização sociopolítica não me parece que o permita. Mas ainda assim devíamos pensar nisso e, no caso de nos parecer ridículo, deveríamos reflectir no que nos conduz a esse julgamento e tentar perceber se não haverá uma dose de mesquinhice. Para que fique bem claro e que os atalhos habituais de boicote ao raciocínio não floresçam é bom que se saiba que a minha amiga nem é de esquerda, nem anarquista, nem pobrezinha. É só séria, culta e inteligente e gostava de um mundo mais sério, mais culto e mais inteligente. Ela tem consciência que sem desprendimento não há santo que nos valha. E eu concordo e acho até que, na falta de valores materiais a transmitir, nos centraríamos mais na transmissão de outros valores tão desprovidos, ultimamente, de valor.

Sermente in Primeiro a Ética Depois a Estética e Só Depois a Política