Tu afinal gostas é de estar à tua mercê.” Jorge, por breves instantes, fica mais esclarecido, mais velho, mais enrugado, mais caído. Fica mais seco ainda que afogado em mágoa. Talvez seja medo não de perder a esposa mas de sair da aparente e ilusória felicidade que transparece para o mundo. Levanta-se, beija a testa de sua Mãe e dirige-se para a lareira onde estava a sua roupa. Com um cheiro a madeira queimada estonteante dirige-se para a porta e sua Mãe diz “Estou aqui sempre para ti. Ainda que nada desta vida seja para sempre. Vai mas volta. Leva esta saca de batata doce e laranjas para os pequenos almoços.” Jorge acena, dirige-se para o carro, consegue esboçar um leve sorriso com alguma perversidade e ainda que não seja verdadeira…
Esta ligação umbilical que sempre estabeleceu com a mãe era quase sempre revigorante. Os cuidados de filho único simbolizados pelas laranjas, que a mãe sempre preocupada lhe arranjava, de modo a começar o dia de uma forma saudável, era exactamente aquilo que ele precisava naquele momento. Jorge entra no seu desportivo de uma forma pragmática e encorajada. A vida é um Porsche com uma condução desconfortável, mas tem de ser gerida com igual precisão implacável. Ligeiramente incomodado pelo facto de ter sujado os tapetes sempre imaculados do seu carro, Jorge pára na primeira estação de serviço onde encontra uma lavagem automática. Fez isso muitas vezes, lavar o carro que tanto amava, fazia dele muitas vezes um homem novo. O cheiro a limpo e o brilho do cinza prata do capôt alavancavam as suas expectativas sobre o futuro próximo.
É isso, Jorge tem de enfrentar o problema de frente. Tem de olhar a sua mulher olhos nos olhos, sentir e esgrimir os argumentos que importunam a sua ordem universal.
O seu equilíbrio parece um pouco menos lavado que o carro, ainda assim. A consciência de que o natal sem correspondência afectuosa o afetava começava deveras a incomodá-lo. Odiava a hipótese de estar a viver um conto de natal. Aqueles em que os sentimentos vencem os bens materiais e os pobres têm uma refeição igual à dos ricos. Bacalhau, não, pensava. Molho fervido? Fraternidade? Estava a stressar. E aquela vontade de ligar à Sofia? Que fragilidade. Que vergonha se apoderava. Jorge tentava dizer-se piadas que ridicularizassem a sua inevitável vontade de ceder. “Jorge, Jorge, ainda acabas a partilhar gatinhos na rede social”. A onda sentimental, a culpa era da mãe, que o abraçava era cada vez mais intensa. Sentia-se cada vez mais humano. Que normalidade. Onde estaria o cálculo e a racionalidade?
Na estrada, uma senhora, dá-lhe prioridade com um sorriso…
Deu um salto. Gritou “SOFIA” num tom aflitivo e bem alto. Ela encosta-se ao seu peito e oferece-lhe um genuíno e delicioso olhar de início de dia, acompanhado de um grande sorriso. “A Clarinha?”- pergunta. “Querido, outra vez? Sempre que ela dorme lá tens sonhos estranhos. Ela tem 14 anos e sabe que tens um lugar único na vida dela. És mais que um Pai. Ainda são 7h, vamos descansar mais um pouco.” Jorge sorri, descontrai e adormecem redondamente. Saltou novamente. Agora sozinho. Pega no telemóvel e tinha 15 mensagens e 25 chamadas. Estava atrasado. Já eram 12h. Já era dia 24. Já estava a campainha a tocar e a Clarinha a entrar pela casa dentro. Já havia um cheirinho a açúcar e canela que invadia a casa e que despoletou ainda mais paz e brilho no dia do Jorge. Toma um duche em dois minutos e demora mais dois para se vestir. Pega nos Jeans que estão mais à mão, veste umas das 10 camisas brancas largas que dispõem no armário, agarra o casaco de ontem e lava os dentes sem sequer olhar com atenção para o espelho. Fê-lo por hábito. Entra na cozinha e a Clarinha corre para os seus braços e grita “Pai!”. Entre sorrisos e pequenas histórias do estilo “o que fizeste na noite passada”, Jorge tem os quatro melhores amigos a ligarem para a esposa em desespero porque estão no restaurante da aldeia à sua espera para começarem o usual almoço dos cinco no dia 24 de dezembro. Beija Sofia, beija a sua barriga e aperta a Clarinha que estava de sofá a ver o “Sozinho em Casa”. Sai a correr e esboça o maior sorriso que tem dentro de si. Entra no seu carro. Não é um Porsche. Nem vale metade de um. Mas ele também não é o outro Jorge. E certamente transporta o dobro da felicidade e da paz do que o outro. Liga o seu Pai e diz “Filho, hoje somos 25 à mesa! Está tudo pronto! Venham! Venham o quanto antes! Os teus irmãos estão a chegar! A Mama está com muitas saudades!” Ao que Jorge responde “Vou almoçar com eles, pego nas minhas princesas e seguimos para aí. Até já meu Pai!”
Este vai ser seguramente um dos melhores Natais de sempre. Para o Jorge e para a sua família e esperamos que seja ainda melhor para si estimado leitor. Que ninguém se sinta Sozinho em Casa. Estes são os votos da Ana Rita, do Hugo e do João, solidários e em colaboração com o Jornal Renovação.