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Perspicuidade e Sociedade

3 Fevereiro 2016
Perspicuidade e Sociedade
Opinião
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“eleitos eternos (…) e que sujeitam a população através do laço essencial da representação; governos que fazem leis por si próprios; representantes do povo massivamente resultantes de uma escola de administração; ministros ou colaboradores de ministros recontratados em empresas públicas ou semi-públicas; partidos financiados pela fraude nos contratos públicos; homens de negócios que investem somas colossais na perseguição de um mandato eleitoral; patrões de impérios mediáticos privados que se apoderam através das suas funções públicas do império dos meios públicos.”

Jacques Rancière, in O Ódio à Democracia

Gosto muito de Vila do Conde.
A dimensão desta reflexão encerra-se no conceito de democracia e transgressão.
O seu espaço-tempo é o da crise da política e da política da crise, e tem como força motriz o desinteresse popular patente nas democracias liberais e a hostilidade dos intelectuais mediáticos face ao consumismo do homem democrático que mede todos os valores de acordo com o princípio do prazer. A questão fundamental reside no facto de que não vivemos dentro de democracias, mas sim dentro de estados de direito oligárquicos, em que há, sob certos limites, o reconhecimento da soberania popular e das liberdades individuais. Esta ideia de soberania popular, contudo, assenta-se numa ambiguidade: por um lado, é o modo de incluir aqueles que não dispõem de títulos para governar; e, por outro, esta soberania mostra-se ou aplica-se no sistema de representação, que é, por natureza, oligárquico. Por um lado aproxima-se das práticas políticas, por outro, da lógica governamental, que tende a silenciá-las.
Alain Badiou sublinha que o mundo democrático constrói-se como uma operação de exclusão dos que ficam fora dele, sendo assim construção de muros ou diques; Zlavoj Zizek pensa que a forma parlamentar vicia a democracia já que implica passividade do povo. Estes estados oligárquicos e republicanos, na actualidade, têm a responsabilidade de gestão das exigências do capital e do ilimitado poder da riqueza e suas consequências, sobre as populações. Estas exigências são por eles tratadas como uma realidade única e incontornável e são assunto de especialistas: são estes, os detentores da riqueza e da ciência – sobretudo económica – que afirmam ter a capacidade de escolher os bons caminhos, e não a escolha popular. Perante a ideologia do consenso que reina nesta situação, os movimentos contrários a esta corrente são taxados como populistas, aí se encaixando um largo espectro, desde fanatismos religiosos a movimentos de recusa dos princípios impostos por estas necessidades económicas ou estatais. No regime consensual actual, populismo é o nome pelo qual se tenta desqualificar estes movimentos democráticos, ora misturando-os com aqueles que são seus contrários, ora buscando-se deslegitimá-los como anacrónicos, agarrados a um passado: “este nome máscara e revela ao mesmo tempo o grande desejo da oligarquia: governar sem o povo, quer dizer, sem divisão do povo; governar sem política”, como diz Rancière. O que embaraça as oligarquias são os combates democráticos. Mas estes combates políticos, que redistribuem fronteiras numa situação social específica, embora sejam potencialmente capazes de ir além do conflito particular em direcção à universalização dos seus objetivos, sofrem o perigo de ficar sempre restritos a estas situações, como lutas particulares. Esta tensão, inevitável, fala das dificuldades da democracia, as quais se somam aos confrontos dos obstáculos locais e adversidades ligadas à construção de um espaço de convergência de acções. Exorta Jacques Rancière que as liberdades não são dádivas dos oligarcas. Mas sim conquistadas pela acção democrática e só conservam a sua efectividade através da mesma acção. A defesa da democracia como o modo de ser do político, fundamentado no princípio da igualdade e na sua verificação incessante, não equivale à defesa de uma sociedade socialista que hipoteticamente viria substituir esta actual: estas duas concepções alimentam-se de lógicas distintas entre si. O socialismo associou-se a uma concepção do processo histórico em que o modo de produção e troca capitalistas formariam já as condições materiais de uma sociedade igualitária e de sua expansão mundial. Compreender a democracia sob a lógica da discordância, enquanto actualização constante do princípio de igualdade de forma à produção ininterrupta de desigualdade social, significa renunciar à hipótese de que a sociedade desigual traga ao seu lado alguma sociedade igual. A sociedade igual não é senão o conjunto de relações igualitárias que se traçam aqui e agora através de actos singulares e precários. A democracia não é garantida por nenhuma forma institucional. Ela não é conduzida por nenhuma necessidade histórica, e não comporta alguma. Ela não é confiada a não ser à constância de seus próprios actos. O que se visualiza a partir desta concepção é a defesa da democracia entendida como o revolver constante do solo social, por meio de uma complexa presença de múltiplas cenas não consensuais originando segundo lugares, tempos, grupos e extensões distintas, e realizadas sob o signo da falta de garantia, da instabilidade: acções transformadoras, de verificação da igualdade, verificação que é ao mesmo tempo estética e política. O movimento democrático é um movimento de transgressão dos limites. Jacques Rancière com isto quer dizer, um movimento para estender a igualdade do homem público a outros domínios da vida comum e em particular a todos aqueles governados pela ilimitação capitalista da riqueza. Esta reflexão ocupa a democracia. Resta saber o grau de efectividade desta ocupação, perceber se e como foi sentida. Equacionar como ocupar democraticamente a democracia! A força desta demo-estratégia depende da capacidade de pensar de forma positiva o irresistível mito democrático, de constituir uma contra-hegemonia organizadora da “parte dos sem parte ”, simultaneamente à crise da política e à política da crise. De ser e fazer política.
Gosto muito de Vila do Conde.

Filipe Marques