Última hora

Crónica de sonho de um sonhador crónico

26 Julho 2017
Crónica de sonho de um sonhador crónico
Opinião
0

Uma senhora casou com um senhor. Às vezes acontece. Ela optou por não usar o apelido dele. Argumentava que a família dele não lhe dizia grande coisa. E que a mulher não é um bem a quem se atribui uma chapa de matrícula. Ele, apaixonado, achou muito bem. Ele, que até tinha sonhado com uma família com o seu apelido, que até tinha sonhado em tatuar o seu apelido no BI de uma mulher, ele, apaixonado, sentiu um imenso orgulho na independência da sua mulher. Afinal, sem essa independência ele não gostaria tanto dela. Socialmente, também era bastante enriquecedor. Ele sabia que a percepção dos outros o colocava na gaveta dos autoritários machistas e vaidosos. A sua mulher não adoptar o seu apelido e gabar-se disso publicamente era uma golfada de ar mentolado no seu posicionamento e, por isso, ele tinha até um certo orgulho na sua modernidade condescendente que fazia questão de ostentar. Uns meses depois do matrimónio, já ambos se arrependiam da decisão. Casar não tinha sido boa ideia. Logo ele que tinha tantas pretendentes. Ainda assim, a compostura e a conjuntura manteve-os juntos por mais de três anos. Nessa altura, decidiram dar início ao processo de divórcio e anunciar a amigos e familiares. Apesar de um casamento curto, estes dois eram namorados há mais de vinte anos e isso implicava que os amigos fossem todos comuns. A tal modernidade na paixão deu lugar a um passado muito longínquo na separação. A tal independência passou a ser um indício que ele não soube ler. Isso magoava-o. A ela dava-lhe a camuflagem da coerência. Em vez de seguirem o seu rumo, natural e singularmente, optaram por disputar as amizades comuns, fazendo jus ao tal universo em que estavam inseridos, que julgava a não adopção do apelido por parte da mulher uma modernice. Eram, portanto, uns tacanhos com entusiasmos libertinos em cenários passionais. Entusiasmados, quer com as vitórias pessoais, quer com as derrotas do outro, chantageavam emocionalmente cada um dos amigos, obrigando-os a escolher entre um deles. Como se fossem o centro do mundo, como se os amigos precisassem de algum deles para serem felizes. Parecia que o coração deles, inchado pelo amor que sentiram, não sobreviveria à felicidade do outro. E quanto mais desinchava o coração, mais aumentava o ego para ocupar o espaço livre no peito. Sem que se apercebessem, o mal do outro passou a ser mais satisfatório que o bem do próprio. O ego doente ocupava agora o espaço do coração em tempos inchado de amor, e apertava-o contra o pulmão esquerdo como se quisesse esmagá-lo. Agonia. Como a todos os outros amigos, confrontaram-me com a escolha. Bendita a hora em que me lembrei de uma das minhas “frases feitas” preferidas: Quem me obriga a escolher, já escolheu. Ambos me pediram para escolher.

Sermente in Dependência

(Esta é uma estória de coincidência. Qualquer semelhança com a vida política local é pura ficção.)