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Liberdade e Eutanásia

29 Março 2017
Liberdade e Eutanásia
Opinião
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Em Portugal está a decorrer um debate sobre a legalização, ou não, da eutanásia. Como é usual numa questão que envolve valores sociais e princípios fundamentais, as posições tendem a extremar-se. Queiramos ou não “a vida não se define por critérios médico-científicos, já que se trata de um conceito político, filosófico e teológico”, referiu António Guerreiro, na sua coluna do Público. Apoiando-se em Giorgio Agamben e em Michel Foucault, conclui que o que está em causa é mais uma página no livro da biopolítica. Sim, tudo o que hoje discutimos sobre os tais princípios fundamentais tem origem nas decisões do poder político.
A verdade é que vivemos numa sociedade que se esqueceu da morte enquanto momento fundamental da própria existência humana. É a “crise da morte” na lúcida expressão de Edgar Morin. Num mundo onde todos julgam ter direito à felicidade material, a morte é algo que entra em choque com essa evidência, pelo que a queremos afastar e esquecer, talvez porque estamos “desiludidos com Deus” para parafrasear Richard Dawkins e resolvemos substitui-lo por uma amiga, mais espectacular e sensorial, a Ciência.
Então, como responder à questão fundamental: qual é o valor da Vida? Há quem defenda que ela possui um valor absoluto e intrínseco, tornando-a sagrada e intocável. Ouros, utilitaristas, entendem que a vida não é apenas o corpo humano em funcionamento, pelo que só deveremos mantê-la se realmente valer a pena viver. Uma terceira posição, intermédia, deixa a resolução da questão para o campo da escolha individual: é o próprio quem decide. É aqui que surge a figura do “testamento vital” que dá vida à figura do “competente eu”, que tem vindo a ser progressivamente aceite, incluindo em Portugal, onde se tem destacado o Prof. Dr. Rui Nunes na defesa da “Directiva Antecipada de Vontade”.
Hoje, a palavra «eutanásia» é já um enorme guarda-chuva sob o qual se abrigam um sem número de subdivisões. Temos a eutanásia Assistida e a Não Assistida, conforme seja, ou não, acompanhada por médico ou terceiro. Temos a Activa e a Passiva, consoante o comportamento adoptado – ministrar uma injecção letal será visto como activa, enquanto não dar uma injecção medicamentosa será passiva. Temos ainda a questão da vontade, que nos leva a eutanásia Voluntária, onde o doente solicita a morte, a Involuntária onde o doente não a pede e a Não Voluntária, onde o doente se encontra incapaz de poder decidir se quer ou não quer. Depois, há ainda espaço para se falar da distanásia ou obstinação terapêutica, que acontece quando os tratamentos são fúteis, mas o médico insiste na aplicação. Não deve igualmente haver confusão com o conceito de ortotanásia, que possibilita ao paciente ter uma “morte digna” e que tem uma das suas faces mais visível nos cuidados paliativos, que não adiam nem aceleram a morte, antes libertam o paciente do sofrimento. E há, ainda, a mais controversa morte assistida, uma modalidade de eutanásia activa, já legalmente autorizada em alguns países europeus e em meia dúzia de estados dos EUA.
Convirá recordar que não há qualquer dúvida sobre a proibição da eutanásia em Portugal. Uma qualquer discussão, séria e objectiva, implica que qualquer decisão que se venha a tomar passará, em primeiro lugar, por uma revisão constitucional. Se tal não acontecer, todo e qualquer diploma será um nado-morto, por estar ferido de inconstitucionalidade.
A solução para esta questão nunca será pacífica e apaziguadora. Mas há caminhos que se podem escolher. Por mim, penso que o conceito de Liberdade é estruturante na tentativa de se obter uma resposta para este complexo problema, que toca múltiplas esferas do conhecimento, mergulha na moral e na ética, para emergir sem qualquer consenso. Não haverá jamais soluções perfeitas para resolver este aparente paradoxo de alguém ser depositário do dom da vida e querer antecipar-lhe o ponto final. Desde logo, rejeito a prática da eutanásia que não decorra da vontade expressa e consciente do interessado. O denominado testamento vital assume, assim, um papel fundamental. O consentimento não pode ser algo irreflectido, uma decisão tomada no meio duma tempestade emocional, mas nascido duma racionalidade fria e atempada. No entanto, esta é uma decisão que implica três valores estruturantes e interligados: informação, capacidade e liberdade. Informação porque o interessado deve estar completamente instruído da sua situação, das possíveis alternativas e das diversas consequências da sua opção final. Capacidade quer dizer que deve estar completamente lúcido e são de espírito. A decisão deverá ser tomada após racionalização e não de forma precipitada. Liberdade porque a decisão terá de nascer dum acto de vontade formado livremente, sem condicionalismos familiares, económicos, médicos ou de outra qualquer natureza. Só aqui, no momento em que o interessado se encontra consigo mesmo, na profundidade do seu ser, nascerá uma decisão completamente livre, a de decidir sobre o fim prematuro da sua existência.
Ninguém tem o poder de decidir o destino duma vida a não ser o próprio. Se ele não for capaz, ou não puder, a sua situação deverá manter-se até ao desfecho natural, dentro de contingências paliativas e da mais estrita racionalidade medicamentosa. Agir de forma contrária, levará sempre a arbítrios, ao risco de ver a decisão ser tomada não no interesse do próprio, mas de terceiros. Por isso, a autonomia da vontade e a liberdade individual são as únicas chaves que vejo serem capazes de abrir a porta da eutanásia.

Pedro Brás Marques