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O silêncio

22 Fevereiro 2017
O silêncio
Opinião
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A crista da onda do desenvolvimento parece imparável e irreversível. Vivemos rodeados de tecnologia, de inovação, de progresso, de velocidade, mas também de algazarra, de barulho, de ruído. Na rua, no café, no cinema e na televisão somos metralhados por imagens velozes, embrulhadas em sons rítmicos, como se a vida fosse controlada pelo tic-tac dum implacável cronómetro incorpóreo. Não há tempo para pensar, nem condições para o fazer. Numa época em que o tempo é escasso, o silêncio tornou-se numa mercadoria rara e preciosa.
Longe vai o tempo em que Paul Simon saudava a escuridão e nos convidava para escutarmos os sons do silêncio. Mas nem tudo está perdido, até porque o ser humano, precisamente para salvaguardar a sua humanidade, precisa do silêncio. E, volta e meia, lá somos recordados da existência desse silêncio, do seu profundo significado e da sua voz paradoxal que tanto nos dá resposta como nos mostra a limitação da nossa cognoscibilidade.
No espaço de menos dum mês, encontrei na Sétima Arte dois enormes exemplos do que pode significar o silêncio. O primeiro, no filme homónimo, realizado por Martin Scorcese baseado no livro “O Silêncio” de Shusaku Endo. Conta a história de dois padres portugueses, imergidos numa Japão ainda medieval, onde a religiosidade cristã é perseguida e premiada com a morte. Perante a ausência de resposta de Deus face à dor daqueles crentes, a dúvida instala-se. Será que esse silêncio é uma ausência de resposta ou é o caminho do Senhor? Porque se o silêncio é a voz de Deus, sofrer dor e tortura será o caminho acertado? O outro exemplo, muito diverso deste, está no filme “Manchester à beira mar”, de Kenneth Lonergan. Aqui, o silêncio é a ausência de sentido da vida. Confrontado com um drama inimaginável, a personagem central não consegue ultrapassar a dor e como que vegeta, à espera que os seus dias acabem…
Entre um e outro fica a certeza de que a nossa vida interior precisa dum farol que tanto pode emitir uma luz religiosa como filosófica, emocional ou racional. Mas elaborar sobre o valor do silêncio é sempre uma tarefa paradoxal. Porque se trata de verbalizar o que não tem palavra, concretizar o inexistente, expressar o intraduzível. A arte é, sem sombra de dúvida, a melhor forma de o fazer. Mas poucos de nós são, efectivamente, artistas. Daí o recurso à obra musical de John Cage, à escrita de Susan Sontag, à pintura de Edward Hopper, ao cinema de Ingmar Bergman ou, como acima referi, ao de Scorcese ou ao de Lonergan.
Não vale a pena eu fugir. É tempo de fazer a pergunta fundamental: e o meu silêncio? Bem, o meu silêncio é onde mora a minha consciência, a tal voz que me dá alento, que me corrige, que me dá paz, que não me deixa dormir. É com ela que travo longas conversas e que entro em profundas reflexões. Ela conhece-me melhor do que ninguém, melhor até do que eu próprio. Não sei se todo este torpor existencial é apenas a perturbação temporária, enquanto vital, da ordem cósmica e do seu silêncio eterno, causada por este amontoado de células que escreve estas linhas. Talvez esta demanda só termine quando já não a puder percepcionar, exactamente como a definiu Oscar Wilde em “O Fantasma de Canterville”: “A Morte deve ser tão bela! Descansar na terra castanha e macia, com as ervas a ondularem sobre a nossa cabeça, e escutar o silêncio! Não ter ontem, nem amanhã! Esquecer o tempo! Esquecer a vida, estar em paz!”.

Pedro Brás Marques