Última hora

Sozinho em casa…

8 Dezembro 2016
Sozinho em casa…
Opinião
0

Jorge, afinal, já sabe. A sua memória selectiva é que lhe tem salvo as noites de sono. Jorge tem essa capacidade de comandar o seu subconsciente. Não de uma forma autoritária em que lhe dá instruções claras, mas de uma forma dissimulada e manipuladora que alimenta com um constante diálogo silencioso que mantém dentro de si. Esta é a única razão porque o consideram um homem calado. Era, além do mais, muito conveniente. A aparente reserva em intervir e interagir com os outros só reforça a imagem de entidade superior que constrói em cada gesto. Esta ambição de controlar o seu próprio iceberg intelectual e emocional é muito semelhante à sua relação com Sofia. Sofia precisou de um tempo para pensar, recompor a sua identidade, disse-lhe ela. Saiu. Levou a Clarinha. Parecia fugir do diabo. Antes, havia-o acusado de uma frieza calculista e egocêntrica. Disse que não percebia o sexo mecânico em horário programado e o banho obrigatório que Jorge não dispensava imediatamente no fim do acto. Disse-lhe outras mariquices como a de que está sempre longe, apesar de andar por ali e não parecer gostar de ninguém além de ele próprio. Jorge achava-a fraca por não resistir à organização que lhes permitia conhecer o futuro. Gostava dela o suficiente para lhe dar um tempo a recompor-se para que regressasse mais convicta da importância do seu comando nas rotinas. A ausência de Clarinha era a que mais lhe doía. No entanto, Jorge, ciente de que a sua relação com a pequena era a única areia na máquina oleada das suas emoções, aproveitava para solidificar as zonas amolecidas pela garota. Era como se ela fosse a única ferrugem capaz de corromper a casa forte sentimental. Não foram poucas as vezes em que Jorge a olhou confuso, tentando decidir se a consideraria a milagrosa excepção ou o mais forte golpe de Sofia para o melindrar e o aproximar da irresponsável humanidade lamechas que enche as televisões.
Enquanto respirava a maresia harmonizada com o seu perfume, Jorge organizava aquilo que haveria de pensar durante o dia. Se elas não voltassem, duas coisas estariam salvas – a sua casa forte e o Porsche de dois lugares. Além disso, o tamanho da casa era o necessário para o seu ego cada dia mais gordo, em contraste com o corpo que contemplava todos os dias no espelho.
O gergelim e as bagas de goji que juntava à granola e ao kefir davam-lhe a sensação de que a eternidade não seria inatingível. Era quando se sentia assim, como uma música do Coltrane, que estava pronto para trabalhar e flutuar sobre o mundo.
Continua…

Hugo Rei Amorim