Última hora

Chernobyl, 30 anos depois.

30 Dezembro 2016
Chernobyl, 30 anos depois.
Opinião
0

Fazendo o balanço do ano, só podemos concordar o quão rico em acontecimentos foi 2016. De tudo, de todas as alegrias e tristezas com que cada ano nos brinda, houve uma efeméride que passou quase despercebida. E não devia.
Passaram três décadas sobre o desastre nuclear de Chernobyl, ocorrido a 26 de Abril de 1986. Nos dias que circundaram a efeméride, recordaram-se os obrigatórios números que aquilatam a tragédia, desde a quantidade de vítimas até aos ciclópicos prejuízos económicos, tudo colorido com as habituais reportagens “antes e depois”, mais umas imagens da época convenientemente ressuscitadas. Mas, rapidamente, esse pouco agitado mar nostálgico amainou e todos voltámos a adormecer placidamente, embalados pelo suave marulhar das águas a bater nas margens do rio Lete.
Felizmente, há quem se encarregue de não deixar esquecer aqueles que verdadeiramente sofreram com o desastre: os milhares que constituíam a população circundante da central nuclear, em especial os residentes na cidade de Pripyat. O relato dos dramas de centenas de homens e mulheres foram compilados em livro por Svetlana Alexievich em “Vozes de Chernobyl”. A força das histórias é tal que a vencedora do Nobel da Literatura particamente não escreve, no sentido criativo da palavra, para apenas transcrever a dor, profunda, dos que foram afectados pelo desastre. As narrações vão desde a perda material, como o abandono do lar, da terra e até dos animais, culminando em dramas pessoais difíceis de imaginar. Os efeitos da radiação foram devastadores. Há aquele relato da mulher que acompanha o marido, sempre lúcido, enquanto a pele dele muda de cor, desprende-se, seguindo-se a própria carne que se solta dos ossos, até chegar a morte, mais do que piedosa. E há as mães que abortam, e as mulheres que ficaram estéreis, e as meninas que nasceram sem vagina e os homens a quem lhes caiem os membros… E há a ignorância sobre o que causa aquilo tudo, “aquele brilhozinho que à noite se vê no chão”. E há a revolta contra a inexistência dum inimigo contra quem se pudesse combater pois “não são os exércitos napoleónicos, nem os nazis, nem sequer os americanos, é um inimigo invisível”… Os mais letrados, perdidos no meio dum oceano de dor, ainda arranjam forças para citarem o grande Pushkin: “E o pensamento da morte apraz à minha alma”… Um cenário de horror inimaginável. Já no tempo de Ovídeo se atestava que por vezes, “a realidade ultrapassa a ficção”…
O que sobra de quase cinco centenas de depoimentos é a esperança. Há derrota, há dor, há lamento, há fúria, há revolta, mas também há conformação e, acima de tudo, há amor, compaixão e esperança. São histórias dramáticas de gente que perdeu tudo: o que tinha e o que era. Os que escaparam, tiveram de refazer a vida a partir do nada, em novas paragens e partilhando a vida com gente que nunca conheceram. Mas no meio daquela dor, tiveram tempo e oportunidade para ajudar, na medida do possível, os desconsolados e os moribundos, assim comprovando a humanidade que habita dentro de nós, mesmo nos momentos do mais profundo desespero.
Só este ano, três décadas depois, é que a cobertura do reactor foi colocada. Os efeitos do acidente, esses, manter-se-ão por milhares de anos, uma eternidade do ponto de vista da duração da vida humana. Mas, para os afectados, directa ou indirectamente, pela radiação, os efeitos preencherão a totalidade da sua existência e não há escapatória possível. O desenvolvimento traz um preço, quase sempre pago com vidas humanas. Mas é precisamente por isso que é importante ouvir estas vozes. Para que não tenhamos de escutar outras.

Pedro Brás Marques