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Pessoas arrumadas

13 Outubro 2016
Pessoas arrumadas
Opinião
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Por esta época multiplicam-se os encontros com os ex-combatentes do Ultramar. Acontecimento que também me toca. Servi Angola, Guiné e Moçambique durante o período da guerra colonial e, por isso, sou solicitado para celebrar, aqui e acolá, essa camaradagem que vai perdendo pé à medida que os anos passam. A olho nu, a primeira análise deste fenómeno, que ocupa o país de norte a sul, é de recarga pobre. Obrigatoriamente uma missa, um almoço, abraços e um adeus até ao ano. Uma espécie de eco sinistro, “até ao meu regresso”. Um saudosismo agoniante vai crescendo porque nos vemos, cada vez mais, envolvidos na sombra da nostalgia. “Vamo-nos perdendo uns aos outros”, à medida que o tempo passa.
Noutra perspectiva, os convívios com ex-combatentes revestem um carácter impiedoso de “pessoas arrumadas”. Fora de uso, após uma guerra que nunca fez consensos, apesar de ter mobilizado a totalidade da Nação. É injusto, historicamente errado, pensar assim. Não há gente que sobra ou sem validade após os redemoinhos da história. A história de qualquer povo não é apenas uma caótica sucessão de lutas anárquicas de uns contra outros. Há sempre quem sofra as dores de parto no património alcançado, feito de esforço, de partilha, de conquistas, de avanços e recuos. Sociologicamente penso que também se aplica aos ex-combatentes do Ultramar o conceito de mestiçagem, onde entraram “outros locatários” e cuja identidade não é feita de raças, mas de existências, na aventura do ser humano, no tempo em que partilhou e viveu o espaço que ocupou. Assim, o “tempo africano” não é contra nós e os ex-combatentes têm o direito de confraternizarem.
O pensamento do Nobel da Literatura de 2008, Jean Marie Le Clézio, ajuda a consolidar a minha tese. Le Clézio nasceu nas margens do Mediterrâneo e, como nós, é filho da aventura e da generosidade. Não como turista ou agressor ideológico-partidário. Nem como um nómada em busca de convivências. O seu pensamento ancorado no Mediterrâneo é ecléctico. Obriga-o e obriga-nos, sem roubar fronteiras, a olhar para além delas.

Pe. Bártolo Pereira