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Crónica de sonho de um sonhador crónico

17 Agosto 2016
Crónica de sonho de um sonhador crónico
Opinião
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“Fornelo vem atrás”.
Era assim que o Sr. José ou o Sr. Reis, os dois mais simpáticos cobradores (ou picas) de sempre, diziam na porta da frente das camionetas da Costa e Lino, depois de anunciar “Gião, Malta, Guilhabreu, Vilarinho e Árvore” e haver quase sempre uma voz que questionava “E Fornelo?”.
Nós acreditávamos que era assim em tudo. Achávamos que Fornelo era uma espécie de Trás-os-Montes sem túnel do Marão. É certo que éramos jovens e estúpidos, mas era assim que sentíamos. Talvez por estar a caminho do Bicho ou por ter um café chamado Maglita, mas a carreira deles vir sempre atrás deve ter a sua quota parte no preconceito. Os animadores de serão embriagado davam forma a esse mesmo preconceito, nomeadamente o Pélé, que animava o café de Vilarinho até ter que regressar à padaria, e que estimulava filosoficamente os presentes com o famoso: “Esta vida é conhecê-los, amá-los e fornê-los”. O nome da terra também deve ter ajudado. Esta convicção não era extensível aos seus habitantes que, pelo que a memória me conta, eram pessoas normalíssimas com o azar de viverem em Fornelo. O sentimento era com a terra que parecia vir sempre atrás.
A abertura dos bombeiros em Fornelo pareceu-me do mais sensato que a vida propõe. É que eu só ia a Fornelo para ver incêndios ou para ver o fogo-de-artifício logo após o magnífico show de som, fumo e luzes nas grandiosas festas da Nossa Senhora da Saúde. (Acho que uma vez até vi lá uma vaca de fogo, mas é possível que esteja a confundir com Crasto, que curiosamente se fundiu a Fornelo para formarem a ígnea freguesia de União das Freguesias de Fornelo e Vairão.) Em qualquer das piromanias, acabava a beber champarrião numa tasquinha que tinha sempre bolinhos de bacalhau. Os preços eram bons e as pessoas recebiam-nos calorosamente como se elas próprias achassem que visitar Fornelo exigia um elevado espírito de sacrifício e bondade. Fogo! Parecia mesmo Trás-os-Montes e tudo o que ele tem de bom!
Quando a água do poço da casa da minha mãe acusou o dopping daquele milho que cresce muito (mas não tem carácter), e a bosta das casas das vacas que não são de fogo, onde é que nós íamos buscar garrafões de água fresca, boa e saudável? Pois claro, lá atrás, aproveitávamos e bebíamos um champarrião.
Eu sempre tive amigos em Fornelo, grandes amigos, mas nunca me lembro de Fornelo ser tema de conversa. Julgo que foi por isso que os mantive….até agora. Nessa altura, com alguns deles, chegámos a pensar em criar o clube do parolo, dada a paixão comum que tínhamos pela noitada de azeitona e broa, champarrião e cantares ao desafio, mas isso nunca foi avante, em grande parte por eu sentir que me faltavam alguns quilates de parolice genuína para estar em pé de igualdade, não obstante ser um grande parolo.
Um tal de crescimento mais uma pequena evolução na consciência colectiva eliminaram o preconceito e o sentimento que nos permitiam estar acima de Fornelo, mas isso, que até parece bom, deixa-me aquela sensação de beco sem saída. Ser correcto não é nada parolo e não ser nada parolo não é nada correcto. Morre o dogma, nasce o paradoxo. É como se tivéssemos perdido todos. E assim lá morreu o nosso Trás-os-Montes, também por culpa da extinção dos cobradores nas camionetas que perpetuavam, com aquela propaganda nas paragens de autocarro, um imaginário de um Fornelo sempre atrás.

Sermente in Uma Infusa de Champô e Três Copos