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No olhar começa ou acaba tudo

22 Julho 2016
No olhar começa ou acaba tudo
Opinião
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Aqui há tempos a minha bicicleta, comigo em cima, foi atropelada por um Doberman aos saltos excitado com a liberdade que a praia que a besta do dono lhe deu. O resultado foi a minha queda aparatosa na ciclovia e consequente fractura exposta do rádio e do cúbito, os ossos do meu antebraço direito. O cão ficou-se por ali, provavelmente por ser uma coisa senciente (segundo o PAN), mas o dono tentou fugir provavelmente por ser uma coisa sem consciente.
Quando dei entrada no hospital da Póvoa, o meu colega médico doutra especialidade que não a minha, mal olhou para mim e, olhos fixos no computador da urgência, fazia perguntas tão inteligentes como: – “ o cão atropelou a bicicleta?! E eu: – “A bicicleta e a mim!”. E ele: “Ah!”- Assim a modos tipo “Eureca!” ou tive um “Insight”. Alguns dos meus colegas são muito espertos, tão espertos que nem precisam de nos olhar nos olhos.
E digo isto porque há dois tipos de comunicação: a verbal e a não verbal. A primeira faz-se com a boca, até grunhindo; a segunda, muito mais complexa faz-se com o corpo, a mímica, as mãos e, sobretudo os olhos. Pois o meu colega era tão senciente que só precisava dos meus: -“Ui que dói!”. Não me lembro daquele médico me ter olhado nem de relance a não ser para o braço partido. E quando o colega da especialidade chegou olhou vagamente a minha pata, quero dizer o meu braço, pespegou como o outro os olhos no ecrã do computador, tal como o outro tinha feito, olhou de soslaio uma enfermeira e declarou neutralmente à dita: -“É para o bloco!”. E saiu.
Eu por mim pensei que ou era pouca sorte minha no acerto com os médicos, ou eram todos animais sencientes.
A coisa passou e eu precisei de consultar por outra razão uma colega do SNS, e para meu espanto saiu-me outra senciente. A minha face e os meus olhos deviam estar projectados no ecrã do computador porque a colega não via outra coisa.
Tudo isto vem a propósito desta coisa de ninguém olhar os outros nos olhos – onde tudo começa, desde um golpe de olhar que inicia um namoro, até outro que prenuncia ou anuncia um divórcio – estar a perder a função para que existe: juntar os membros da espécie humana. Na verdade o não olhar o outro nos olhos, mais que vício, significa distância, isolamento, associabilidade e solidão!
Quando num restaurante observo uma família em que todos os membros estão mergulhados nos milhares de amigos do Facebook, fico a perceber que aquela gente não tem com quem empatizar, logo verdadeiros amigos; quando os vejo agarrados ao telemóvel onde não há olhos fico a saber que não há nenhum genuíno contacto – mas interesses. Definitivamente caminhamos para um futuro de solidão feita de tédio, logo desinteresse.
Acontece que sendo através do olhar que podemos pedir compaixão, e ela geralmente nos é oferecida pelo nosso inimigo quando abrimos os braços e lhe expomos a jugular, fico a pensar como passou a ser fácil atraiçoar pelo Facebook, ou assassinar com um míssil disparado dum drone sobre alguém cujos olhos eu, assassino, não posso ler.

Couto Soares Pacheco