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Crónica de sonho de um sonhador crónico

6 Maio 2016
Crónica de sonho de um sonhador crónico
Opinião
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7:30 da manhã na minha cozinha. Mais um dia à mesma hora. Tem vezes que o faço sem dormir, outras acabado de acordar. Hoje nem sei. Dormi, dormi. São sonos diferentes. Este que sinto é quente. O outro de quando ainda não dormi, é um sono gelado. De qualquer das formas, o amor é o mesmo. Pequenos almoços para os meus queridos. Oito pães. Quatro para merendas, quatro para comer agora. Abro as páginas dos jornais no telemóvel. Um rapaz estúpido bateu num cãozinho e publicou o vídeo. Estupor. 729 comentários. Uns para o matar, outros para o insultar e outros para lhe dar uma lição, com paus e ferros quentes. Sugerem violá-­lo. A mãe dele tem culpa e o pai também, dizem. Ninguém, repito, ninguém, refere que o rapaz tem problemas e precisa de ajuda. Que estranho!? Tanta solidariedade com o cão e tão pouca com o rapaz visivelmente desequilibrado. Dá ideia que o rapaz conhecia os desejos da comunidade e lhes deu precisamente aquilo que eles queriam. Sinto que, há uns anos, só os brutamontes diriam tal coisa. Sinto que a brutamontice vingou e conquistou até os sensíveis amigos dos animais que dantes usavam sandálias. Também lhe prometia um chapadão, mas tenho que ir ao frigorífico buscar a mortadela de azeitona para o lanche da mais nova. Penso no dentista. Foi a luz do frigorífico a bater-­me na cara. Agora sei que os dentes têm preços diferentes consoante a qualidade. Mais uma que tenho que engolir sem mastigar para não estragar os dentes sãos. Depois grito “alguém quer marmelada para comer agora?”. Ninguém responde. Ponho marmelada num pão. Se ninguém quiser, como eu. Eu gosto da marmelada virada num prato para se cortar à fatia. Se fica dentro da malga, é mais difícil e perde-se a melhor fatia de todas. A primeira. Aquela que parece envernizada. Adoro a primeira marmelada. “Toca a mexer gente”. É definitivo. Hoje dormi. Distingue-se pelo hálito. Nenhum é recomendável, mas este é o pós Morpheu. Vou tomar café. A minha máquina de café está na sala. É Nespresso. O café é gostoso e tem uma espuminha boa, mas falta­-lhe a droga. Os meus amigos concordam todos comigo, que fomos bem enganados pelo Clooney. Penso outra vez no rapaz doente que bate nos cães e nas pessoas que tanto se indignam com a violência no animal e encontram justiça na violência no rapaz. Pergunto-­me onde andam quando o assunto é refugiados. Sei que acreditam que a sofisticação de uma comunidade pode ser medida pela forma como se tratam os animais, mas parece-­me que se esquecem que isso não interessa nada quando a comunidade parece composta por animais. Era suposto subir a fasquia e não descê­-la. Parece-­me que compensam o amor aos animais com ódio às pessoas. É como se salvássemos a República com uma monarquia. Recuássemos. A propósito, eu respeito e gosto de todos os animais. Todos. E adoro a primeira fatia da marmelada e acabei por ficar com a sande pra mim. “Oupa pra escola.”

Sermente in Todo dia ela faz tudo sempre igual, me sacode às 6 horas da manhã, me sorri um sorriso pontual e me beija com a boca de hortelã.