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Porque sou humano…

25 Novembro 2015
Porque sou humano…
Opinião
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Os recentes atentados terroristas em Paris constituem um momento perante o qual a nossa cómoda indiferença sofre um abalo. Todos nos sentimos vítimas, todos somos vítimas. “Je suis parisien”. A leitura de que os nossos mais profundos valores estão a ser bombardeados apenas confirma que a sociedade em que nos inserimos os adquiriu como património comum.
A condenação universal que observámos, a dor fraterna que sentimos, o luto que envergámos, tudo isso não tem discussão. O que tem discussão, é a resposta à pergunta: “e agora o que fazer?”.
Tenho dúvidas. Tenho imensas dúvidas.
Porque sou humano, a minha reacção epidérmica é fazer pagar caro aqueles que violaram a mais importante de todas as leis de relacionamento humano, mesmo que apócrifa: a da fraternidade. Sinto-me vítima e, como tal, não quero justiça. Quero mais. Quero vingança. Quero que todos aqueles meus irmãos, caídos por força de balas fanáticas e intolerantes, tenham em sangue a recompensa devida por lhes terem tirado a vida. Não há tempo nem é altura para negociações ou contemplações. Há que eliminar, física e rapidamente, estes vírus que me fazem estar inquieto quando estou numa esplanada, a saborear um café.
Porque sou humano, sei que todo o ser humano é meu irmão. Aqueles que optaram por este caminho, são irmãos tresmalhados, que precisam de ajuda. Falhei, falhámos todos, quando não conseguimos incutir-lhes os valores de vivência social do nosso mundo e em cujas virtudes acreditamos. Abri-lhes fraternalmente as portas de minha casa, dei-lhes liberdade e prometi trata-los com igualdade. Mas talvez não fosse bem isso o que lhes ofereci. Talvez a liberdade não fosse a total e talvez, até, a igualdade nem sequer o fosse. E não me posso esquecer de que há séculos que também entro de forma pelo menos discutível na sua casa e nem sempre respeito o que por lá encontro. E isto deixa-me inquieto quando estou numa esplanada, a saborear um café.
Porque sou humano, conheço as minhas limitações. Perdido, como vos confesso que estou, vou em busca daquilo ou daqueles que, um dia, procuraram iluminar a vida de outros em momentos semelhantes. O meu primeiro pensamento, talvez por deformação profissional, vai logo para a Babilónia e para o férreo Código de Hammurabi e a primeira das leis de recompensa penal, a de taleão: “olho por olho, dente por dente”. Mas logo encontro a correcção feita pela “Grande Alma” Ghandi: “a ser assim, vamos acabar todos cegos e desdentados”… E recordo-me, ainda, de Cristo, claro, quando aconselhou “Não resistais ao homem mau; mas a qualquer que te dá na face direita, volta-lhe também a outra; ao que quer demandar contigo e tirar-te a túnica, larga-lhe também a capa; e quem te obriga a andar mil passos, vai com ele dois mil”.
Porque sou humano, conheço o tamanho da minha alma e ela não é tão grande. Sei os princípios em que acredito, os valores que tenho enraizados, mas são massacres como estes que me põem à prova, que testam os meus limites. Foram 130 a morrer em França. Na Síria, no Quénia, em tanto lado, já houve atentados semelhantes e com mais vítimas e eu não fiquei assim. Eu percebo que estes me estão próximos, partilham tudo ou quase tudo comigo e já fui a França e gosto da França e a França deu-me tanta, tanta luz… E racionalizo que o faço com a mesma naturalidade com que choro a morte dum conhecido que foi atropelado e já não acontece o mesmo no caso dum cidadão que morava na mesma rua mas que eu não conhecia… Mas…será que sou hipócrita por chorar estes e não ter chorado os outros?
Porque sou humano, tenho dificuldade em estender a minha mão aberta a quem antecipadamente sei que não me vai estender a dele. Tenho dificuldade em ser tolerante com alguém que me quer eliminar apenas porque penso diferente dele ou porque não acredito na sua visão de Deus. Tenho dificuldade em compreender quem destrói a sua própria história, quem trata as mulheres como animais, quem condena à morte um homem por amar outro e quem mata em nome de Deus. Ódio gera ódio. Eu sei. Já Martin Luther King avisava de que “não é com escuridão que se afasta a escuridão. Só com luz se consegue fazer isso. O ódio não afasta o ódio, só o amor consegue fazer isso”.
Porque sou humano, tenho medo de tomar decisões sobre algo tão delicado. Será que há situações em que ser tolerante é tomar uma acção em nome da própria preservação do conceito de tolerância? Como é que se fala com alguém que não dialoga, que não faz pactos, que apenas quer impor a sua versão do Mundo? Se nada fizer arriscar-me-ei, no longo termo, a ser “submetido” como profetizou Michel Houellebecq numa visão pervertida de conquista da Paz? E se algo fizer, se tomar essa acção, qual é a medida certa? Estarei a alinhar com os extremistas da outra ponta, que defendem a xenofobia e os ghettos?
Porque sou humano, estes conflitos corroem-me.
Porque tenho medo.
Porque tenho dúvidas.
Porque sou humano.

Pedro Brás Marques